PROFª. KATHERINNE FERRO MOURA FRANCO|12 de Novembro de 2021
Provavelmente, a primeira descrição médica da fibromialgia foi realizada pelo médico europeu Guillaume de Baillou, que descreveu pela primeira vez o termo “reumatismo”. Em 1592, ele publicou o livro "Liber de Rheumatismo", com algumas descrições de dor muscular semelhante à fibromialgia. No entanto, os sintomas da fibromialgia começaram a ser melhor descritos apenas no século 18 por George Beard, usando o termo “neurastenia” para descrevê-los. Nessa mesma época esse tipo de dor foi classificada como sendo um reumatismo muscular, diferente dos reumatismos articulares, por ser um distúrbio musculoesquelético do tecido mole, doloroso e não deformante. Em 1904, o médico William Gowers criou o termo “fibrosite”, e apenas em 1976 o termo fibrosite foi renomeado para fibromialgia por Philip K. Hench, para gerar uma melhor compreensão da condição, que envolve o tecido fibroso (fibro), muscular (mio) e a dor (algia). Assim, o termo representa uma condição não inflamatória que envolve dor e sensibilidade nos tecidos fibrosos e musculares.
Durante a Segunda Guerra Mundial, houve uma alta ocorrência de fibrosite entre os soldados, o que os rotulou de apresentarem "reumatismo psicogênico". O reumatismo psicogênico teve suas manifestações e sintomas clínicos ligados ao estresse psicológico. A partir da década de 1950, vários estudos passaram a sugerir também que a fibrosite era um distúrbio induzido pelo estresse, com alterações nos hormônios do estresse. O período entre as décadas de 1970 e de 1990 foi importante para a fibromialgia, uma vez que foi o momento em que ela foi renomeada, recebeu os critérios diagnósticos e ferramentas de avaliação. Smythe & Moldofsky, em 1977, propuseram alguns critérios diagnósticos para a fibromialgia baseados em características chave, como síndrome de dor generalizada, fadiga, qualidade do sono ruim, rigidez matinal, fatores agravantes e de alívio das dores, distúrbios emocionais e múltiplos pontos de tensão. Smythe também especificou os locais de pontos de tensão, muitos dos quais foram usados nos critérios diagnósticos do Colégio Americano de Reumatologia de 1990.
Em 1987 a Associação Médica Americana reconheceu a fibromialgia como doença e uma das principais causas de incapacidade. Apenas em 1990, a fibromialgia foi reconhecida pela Organização Mundial de Saúde e integrada na Classificação Internacional de Doenças (CID-10), no capítulo sobre doenças reumáticas não articulares com etiologia desconhecida. Além disso, no mesmo ano, foram publicados os critérios do Colégio Americano de Reumatologia para o diagnóstico da fibromialgia. Embora já tenham passado quase 30 anos da definição desses critérios e reconhecimento da fibromialgia como doença, ainda existem muitas dúvidas em relação a sua causa, fisiopatologia, e estratégias para melhorar os sintomas desses pacientes.
Definição e características clínicas da fibromialgia
A fibromialgia é uma síndrome reumatológica caracterizada por dor crônica generalizada, hiperalgesia (resposta aumentada a um estímulo doloroso) e alodinia (dor causada por um estímulo não doloroso), e associada a outros sintomas como fadiga, distúrbios do sono ou sono não reparador, rigidez matinal, cefaleias crônicas ou enxaquecas, distúrbios cognitivos, dor abdominal difusa, tontura ou vertigem, parestesias e hipersensibilidade a ruídos, odores, luz e produtos químicos. Geralmente também está associada a algumas comorbidades como distúrbios de humor (depressão e ansiedade), síndrome do intestino irritável, disfunção da articulação temporomandibular e síndrome uretral inespecífica.
A fibromialgia pode ser classificada como primária ou concomitante. A fibromialgia primária ocorre quando não existe uma condição médica subjacente ou concomitante que possa ter contribuído para o surgimento da dor do paciente. Já a fibromialgia concomitante ocorre se outras condições, como osteoartrite, artrite reumatoide ou lúpus eritematoso sistêmico, estão presentes e contribuem para o surgimento da dor ou da fadiga do paciente. Porém, o quadro clínico e o tratamento da fibromialgia primária e a concomitante são semelhantes. Isso justifica o fato de que os artigos que mais usam essa classificação são das décadas de 80 e 90, e das principais diretrizes de prática clínica não incluírem esses termos e nem os levarem em consideração para diferenciar o tratamento da fibromialgia.
A dor é o sintoma mais acentuado nesses pacientes, normalmente descrita como uma dor profunda, ardente, latejante, com formigamento, intensa e persistente em todo o corpo. A dor pode começar subitamente após um trauma físico ou emocional, ou começar de forma insidiosa e se desenvolver lentamente ao longo dos anos. Isso contribui para um fenômeno comum na fibromialgia, conhecido como “névoa da fibromialgia”, que corresponde a dificuldade de memória presente nesses pacientes. A cognição medida em pacientes com fibromialgia foi semelhante a de participantes saudáveis 20 anos mais velhos. Além disso, pacientes com fibromialgia têm vários aspectos da capacidade funcional alterados, como uma menor resistência aeróbica, déficits de equilíbrio, maior frequência de quedas e força de preensão palmar diminuída, o que faz com que mulheres com fibromialgia tenham a capacidade funcional semelhante a de idosos saudáveis. Embora essas alterações funcionais estejam presentes, não há correlação ou há uma correlação fraca entre a capacidade funcional e a dor nesses pacientes.
Fisiopatologia da fibromialgia
Pelo fato da fibromialgia ser uma síndrome complexa, com envolvimento de vários sistemas, ainda é um grande desafio para a ciência esclarecer quais alterações encontradas nesses pacientes são causadoras da síndrome e quais apenas representam epifenômenos, ou seja, são apenas fenômenos presentes que não influenciam a fisiopatologia da doença. Na literatura atual, a sensibilização central representa a hipótese fisiopatológica mais relevante, mas também é importante explorar brevemente as hipóteses alternativas relacionadas a fisiopatologia da fibromialgia.
Fatores comportamentais e genéticos
Pesquisas atuais mostram que pode haver uma influência forte de bases genéticas e comportamentais no desenvolvimento da fibromialgia, como na maioria das outras condições de dor crônica mostram que diferentes fatores agregados e fatores genéticos somam o risco de desenvolver esses distúrbios funcionais. Diversos polimorfismos genéticos foram identificados como marcadores específicos desse risco genético. Muitos desses marcadores específicos estão relacionados ao metabolismo e à quebra de neurotransmissores envolvidos na modulação da dor, mas o risco atribuível a esses marcadores genéticos parece limitado.
Fatores ambientais, psicológicos, de estressores psicológicos, e endócrinos
Algumas infecções foram associadas à fibromialgia, como infecções pelo vírus Epstein-Barr ou parvovírus, brucelose e doença de Lyme. O trauma físico, que acomete especialmente a coluna vertebral, também é frequentemente descrito como um fator que pode desencadear a fibromialgia. Porém, a importância de infecções e traumas físicos na etiologia da fibromialgia tem sido contestada por alguns estudos, pois em muitos pacientes nenhum gatilho específico pode ser identificado. Os sintomas típicos da fibromialgia são comuns em pacientes com dor crônica atribuível a geradores de dor periférica, como em doenças articulares inflamatórias (artrite reumatoide ou espondiloartrite anquilosante). A fibromialgia também tem sido associada a uma variedade de estressores psicológicos, incluindo traumas e abusos na infância, estresse relacionado ao trabalho e vida diária, exposição à guerra, eventos catastróficos e perseguição. Esses estressores psicológicos também se relacionam ao sistema de estresse, sendo observado que pacientes com fibromialgia também apresentam alterações no eixo hipotálamo-hipófise-adrenal, como diminuição da secreção do hormônio liberador da corticotrofina pelo hipotálamo, disfunção na ativação da hipófise para secreção da corticotrofina em resposta ao estresse e resposta diminuída do cortisol ao estresse. Também estão presentes outras alterações no sistema nervoso simpático, como hiperatividade persistente do sistema nervoso autônomo com hiporreatividade ao estresse.
Fatores relacionados ao sistema nervoso central
Normalmente, a ativação de receptores periféricos de dor por estímulos nocivos gera um potencial de ação que é transmitido para o corno dorsal da medula espinhal através do gânglio da raiz dorsal. Do corno dorsal da medula, esses potenciais de ação são transportados ao longo da via ascendente da dor ou do trato espinotalâmico até o tálamo e o córtex. A nível central, a dor pode ser controlada por neurônios inibidores da dor e facilitadores da dor. Sinais originados nos centros supra-espinhais podem modular a atividade no corno dorsal, controlando a transmissão da dor na via descendente eferente. Na fibromialgia, o sistema nervoso central tem o papel principal na amplificação da dor e no desenvolvimento de outros sintomas (como distúrbios do sono, fadiga, memória e humor deprimido), pela sensibilização central. Existem dois grupos de pacientes com sensibilização central. Na fibromialgia primária, os pacientes geralmente desenvolvem condições regionais de dor (incluindo cefaleia, disfunção temporomandibular, síndrome do intestino irritável, dismenorreia e cistite intersticial), bem como outros sintomas somáticos e psicológicos (incluindo fadiga, ansiedade e depressão) no início da vida. Com o tempo, a dor torna-se generalizada e é diagnosticada como fibromialgia, ou seja, é um processo “de cima para baixo”. Na fibromialgia concomitante, a dor ocorre como uma comorbidade em pacientes com uma doença que tem entrada nociceptiva identificável em curso, como osteoartrose, artrite reumatoide, entre outras, ou seja, é um processo “de baixo para cima”. Isso mostra que a sensibilização central pode ocorrer sem ação nociceptiva direta, ou pode ser impulsionada por uma entrada nociceptiva periférica contínua. Vários mecanismos estão estritamente relacionados com a sensibilização central. Alguns deles são:
Modulação condicionada da dor. Corresponde ao mecanismo descendente de inibição da dor. Em uma pessoa saudável, a resposta a estímulos dolorosos pode ser atenuada pela regulação do sinal de dor do cérebro para a medula espinhal. Assim, o cérebro decide se a pessoa vai ou não sentir dor, a depender do estímulo recebido e se tem outro estímulo que se sobrepõe ao primeiro. A via descendente eferente de dor é chamada de controle inibitório nocivo difuso, e é mediada pelas vias descendentes opioidérgica e serotoninérgico-noradrenérgica. Pacientes com fibromialgia têm uma redução da capacidade do sistema nervoso central em alcançar a modulação da dor descendente.
Dopamina. Diretamente relacionada à fisiopatologia da fibromialgia. Como a fibromialgia é um distúrbio relacionado ao estresse, o estresse crônico altera a atividade dopaminérgica, e a dopamina está envolvida na analgesia natural em múltiplas áreas do cérebro. Foi observado que pacientes com fibromialgia possuem uma diminuição da liberação de dopamina nos gânglios da base em resposta a dor, quando comparados a participantes saudáveis.
Exames de neuroimagem. Apoiam a hipótese de que a fibromialgia está relacionada ao aumento do processamento da dor no cérebro, através de estudos que mostram que pacientes com fibromialgia possuem hiperperfusão nas áreas de processamento sensorial (córtex somatossensorial) e hipoperfusão nas áreas de processamento emocional e cognitivo (córtex cingulado, amígdala, córtex pré-frontal, giro para-hipocampal e cerebelo). Esses pacientes também apresentam aumento da entrada sensorial a nível central, já que sentem altos níveis de dor com estímulos menos intensos do que participantes saudáveis. A diminuição da disponibilidade do receptor μ-opióide nas áreas de processamento de dor do cérebro também é encontrada, assim como maior perda de massa cinzenta do que a observada no envelhecimento normal, com as maiores atrofias ocorrendo nas regiões de processamento de dor e de resposta ao estresse, sendo que essas atrofias podem ter implicações nos déficits cognitivos apresentados por pacientes com fibromialgia.
Critérios diagnósticos da fibromialgia
Os critérios para o diagnóstico da fibromialgia vêm sendo refinados ao longo de mais de 25 anos. O primeiro critério diagnóstico oficial de fibromialgia foi definido pelo Colégio Americano de Reumatologia em 1990, e desde então vem sendo atualizado e aperfeiçoado para melhorar sua acurácia diagnóstica. Os critérios são baseados apenas na história e exame físico do paciente, pois ainda não existem testes laboratoriais, histológicos e exames de imagem capazes de diagnosticar precisamente a fibromialgia. No entanto, é indicado realizar uma avaliação médica completa e alguns exames laboratoriais (como hemograma completo, níveis de proteína C reativa, níveis séricos de cálcio, níveis de creatina fosfoquinase e níveis de hormônios estimulantes da tireoide) para descartar condições médicas que podem simular os sintomas da fibromialgia, como câncer metastático, dor muscular induzida por estatina ou hipotireoidismo. Além disso, deve-se avaliar a presença de condições concomitantes que possam contribuir para os sintomas, e que exigiriam estratégias específicas de tratamento além daquelas para a fibromialgia, como o lúpus eritematoso sistêmico, artrite reumatoide, osteoartrose, entre outras.
Atualmente existem quatro versões dos critérios diagnósticos da fibromialgia do Colégio Americano de Reumatologia (de 1990, 2010, 2011 e 2016).
1990
2010
2011
2016
Dor generalizada em pelo menos quatro das cinco regiões do corpo (quatro quadrantes e esqueleto axial), exceto face e abdome.
Alguns problemas foram identificados nos critérios diagnósticos. Os critérios de 1990 não incluem outros sintomas como fadiga e sintomas cognitivos, e não diferenciam a fibromialgia primária e concomitante. O maior problema com esses critérios foi a baixa confiabilidade e validade dos pontos dolorosos - tender points, que são altamente correlacionados com o sofrimento, e marcadores pobres de mudança clínica. Os critérios de 2010 eliminaram os pontos dolorosos dos critérios diagnósticos, substituindo-os pelo Índice de Dor Generalizada. Adicionaram sintomas-chave importantes para o diagnóstico da fibromialgia, como fadiga, sono não reparador, problemas cognitivos e sintomas somáticos. Porém esse critério exige que os pacientes não possuam outros distúrbios que expliquem suficientemente a dor, o que acaba excluindo alguns casos de fibromialgia concomitante.
Os critérios de 2011 foram definidos para fins de pesquisas epidemiológicas. A avaliação é baseada nos dados referidos pelo paciente, e não pelo exame clínico, mas é desencorajado que o diagnóstico se dê apenas pelo preenchimento do questionário. É necessária uma validação e interpretação dos resultados por um clínico. A lista de sintomas somáticos, composta anteriormente por 40 sintomas, foi substituída por apenas três: dor de cabeça, dor ou câimbras no abdome inferior e depressão. Possui a escala de sintoma de fibromialgia (composta pela soma do Índice de dor Generalizada e da Severidade dos Sintomas), cujo escore total varia de 0 a 31 pontos. Por fim, os critérios de 2016 foram desenvolvidos ao observar que os critérios de 2010 e 2011 não conseguiam distinguir bem pacientes com algumas síndromes de dor regional dos pacientes de fibromialgia. Por isso os critérios de 2016 exigem um IDG de 4 a 6, e não de 3 a 6 como os critérios de 2010 e 2011. Esses critérios também removeram a exclusão de distúrbios que pudessem explicar suficientemente a dor, declarando explicitamente que um diagnóstico de fibromialgia é válido independentemente de outros diagnósticos (fibromialgia concomitante), e que um diagnóstico de fibromialgia não exclui a presença de outras doenças clinicamente importantes (como o lúpus eritematoso sistêmico, artrite reumatoide, entre outras).
As taxas de concordância entre todos os critérios diagnósticos do Colégio Americano de Reumatologia são altas. Os critérios de 2010, 2011 e 2016 permitem aumentar as taxas de diagnóstico em homens, já que as mulheres apresentam mais sensibilidade que os homens. Dessa forma, os critérios de 1990, que incluem um limiar de sensibilidade nos pontos dolorosos, diagnosticam seletivamente mais mulheres. Para as mulheres, não faz diferença clínica quais critérios são utilizados. Os critérios de 2010 são mais úteis para o diagnóstico da fibromialgia, por usarem questionários aplicados pelos médicos e auto aplicados pelos pacientes, aumentando o percentual de acertos. Por outro lado, os critérios de 2011 e 2016 apresentam melhor indicação para pesquisas epidemiológicas pela facilidade de sua auto aplicação.
PROFª. KATHERINNE FERRO MOURA FRANCO
Doutora em Fisioterapia pela Universidade Cidade de São Paulo; Mestre em Fisioterapia pela Universidade Cidade de São Paulo; Especialista em Fisioterapia Musculoesquelética pela Irmandade Santa Casa de Misericórdia de São Paulo.